“Ninguém se acostuma aos horrores da guerra”

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Destroços de edifícios em Aleppo, Síria

A brasileira Camila Gomes, de 37 anos, conta, direto de Aleppo, na Síria, as dores e as dificuldades de se viver em meio à guerra civil que deixou mais de 10 mil mortos no país

Julho de 2012. Aleppo, a maior cidade da Síria com 2,1 milhões de habitantes, foi tomada pelo conflito entre o Exército Livre da Síria (ELS) e as forças do presidente Bashar Al-Assad, uma ditadura que perdura há 11 anos, seguida pela de seu pai, que durou 29. As Nações Unidas dizem que ao menos 10 mil pessoas morreram em virtude da guerra civil. Três mil apenas em junho, quando o conflito pegou fogo na capital Damasco. Minha cidade, Aleppo, é o mais novo cenário da guerra: o Crescente Vermelho Árabe Sírio (CICV) calcula que 200 mil pessoas já deixaram a cidade e um milhão a Síria. Nasci no Brasil em 1975, mas ainda criança fui levada por minha mãe, Nádia, à Beirute, no Líbano. Cresci com a guerra civil que devastou aquele país por 15 anos. Era uma realidade muito difícil, que agora vejo se repetir com a minha família. Desde que a guerra na Síria começou, em março de 2011, na cidade de Homs, que fica a 200 quilômetros daqui, a minha vida não é mais a mesma; confinados, assistimos ao noticiário, que relata todos os dias a triste realidade do país: ruas destruídas, cortes de água e de luz, fome e dezenas de mortos e feridos tomam as ruas de Aleppo.

Pela segunda vez em duas semanas saí na rua e fui ao supermercado com Sami, meu marido, que é comerciante – as crianças (Rassin, de 17 anos, e Samira, de 15) ficaram em casa – e comprei verduras que restam  e enlatados. Desde que as bombas e os tiros não pararam em Aleppo, compro enlatados para guardar, pois sei que a guerra civil não acabará tão cedo e não poderei comprar comida. O supermercado é o único lugar aonde vamos, e sempre às pressas. Quando os ruídos silenciam, saímos de carro, mas evitamos utilizar o veículo devido à escassez de gasolina. Há três meses os postos estão quase secos e precisamos ficar na fila por horas para conseguir poucos litros. Comida ainda não nos falta, o que nos afeta é a regular queda de energia. Ficamos por algum tempo no escuro, alheios ao que está acontecendo na cidade. Ouvimos apenas o barulho que atravessa a janela. Às vezes somos surpreendidos pela falta de água, o que nos preocupa.

Em abril, as escolas pararam de funcionar regularmente e minhas duas filhas estão em casa desde julho. Nos últimos dois meses elas ainda iam à escola uma vez por semana para pegar o dever de casa. Agora, elas não saem de casa nem por um minuto. Segurá-las em casa é a parte mais difícil da guerra. Aqui é verão e a temperatura chega aos 40 graus; elas querem ir à praia, sair. No entanto, o medo e o caos no qual a cidade se encontra as mantêm reclusas. Como já passei por isso, quando tinha a mesma idade de minhas filhas, explico para elas que a guerra é passageira e que a vida é assim, essas coisas acontecem. Villat, bairro cristão onde moramos, fica no centro e a apenas três quilômetros do foco principal da guerra civil. O conflito ocorre 24 horas por dia e bem perto daqui. O barulho e a fumaça começaram no oeste, sul e sudeste da cidade.  O conflito é mais intenso em áreas muçulmanas da cidade, como nos bairros de Hamdanyia e Nova Aleppo. Depois que a guerra chegou, não vemos mais um futuro para nossa família em Aleppo.

Durante o ano passado, os voos de Damasco para o exterior estavam todos lotados e sair do país não é um plano fácil. Cogitamos ir embora, mas as estradas que a conectam à Damasco, capital e provável escape, passam por Homs e são muito perigosas. Ninguém passa por lá, pois o risco de ser ferido por uma bala perdida é muito grande. Esta preocupação é somada ao problema do meu passaporte e o de minhas filhas, que estão vencidos e precisam ser renovados pela embaixada brasileira em Damasco, que foi fechada no dia 20 e agora atua no Líbano. Nossos amigos e vizinhos já deixaram a cidade; suas casas estão agora vazias e serão provavelmente saqueadas e queimadas, caso os donos não retornem.

Vivi no Líbano por 12 anos, de 1980 a 1992, quando casei aos 17 anos e fui morar na Síria com meu marido.  Apesar de não ser a primeira guerra da qual tenho a tristeza de presenciar, ninguém se acostuma com a guerra, é horrível. São tempos muito, muito difíceis. Lembro quando era criança, e minha mãe era sozinha. No Líbano, ela cuidava de mim e dos meus dois irmãos em meio à guerra. Durante o dia, ficávamos na escola e era só o bombardeio começar que ela deixava o trabalho – responsável pelo nosso sustento – e nos resgatava apavorada, com medo de que as bombas tivessem nos atingido. Hoje, com os conflitos na Síria, vejo a história se repetir, o que me faz querer deixar Aleppo.

*Este texto foi escrito em agosto de 2012. Segundo as Nações Unidas, o número de mortes já ultrapassou os 100 mil, estimativa publicada em julho de 2013. Por questões de segurança, os nomes apresentados no texto são fictícios.

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