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As vítimas do euro

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A Europa é território de fio desencapado prestes a entrar em curto circuito. Isso porque a crise do euro, que vem se alastrando pelos 17 países que adotam a moeda, deixa diariamente milhares de pessoas desempregadas, desalojadas e sem amparo do governo. Nos países do PIGS (acrônimo da palavra porco, em inglês, e uma crítica à atuação econômica destes países), Portugal, Itália, Grécia e Espanha, a situação se mostra ainda mais cruel: Na Grécia, 25% da população está desempregada. Na Espanha, o cenário também é drástico: mais de 500 famílias são despejadas de seus lares diariamente. Em Portugal, o endividamento externo passa de 100% do PIB (Produto Interno Bruto). E no sul da Itália, apenas uma em quatro mulheres trabalha. Com dívidas estratosféricas, e o desemprego em 11,6% (25 milhões de pessoas), a União Europeia enfrenta agora o começo de uma década perdida, como indica o brasileiro Maílson da Nóbrega, economista e Ex-ministro da Fazenda. “Esse fio desencapado vai demorar a se recuperar. Sonhos serão destruídos, a população pagará pela irresponsabilidade dos governos e os jovens pagarão preços altos”. E as mulheres, em especial, estão sofrendo na pele os efeitos da crise. Elas assistem aos seus maridos ficarem desempregados do dia para noite, e seus filhos sem previsão de arrumar emprego ou sair de casa. São obrigadas a reorganizar os gastos familiares e viver com o mínimo indispensável. Mas a instabilidade econômica do velho continente não é um caso isolado. O estouro da bolha hipotecária nos Estados Unidos, que aconteceu em 2008, desestabilizou a economia de países que já estavam fragilizadas, como é o caso de Itália e Grécia. Depois de o euro atingir o apogeu, em 2006, muitas famílias ficaram endividadas devido ao alto poder de compra. “Os juros baixos e o crédito barato seduziram a população, que adquiriu bens de forma desenfreada, desencadeando esse cenário econômico caótico”, explica André Moreira Cunha, professor de economia da UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mulheres dos quatro países mais atingidos contam suas histórias.

Alexandra Djalilvanbi, 39 anos, corretora de imóveis, Atenas, GréciaImage

Há dois anos e meio fui demitida do meu emprego como corretora de imóveis. Isso aconteceu logo depois dos sintomas da crise ficar visíveis na Grécia, por volta de 2009.  Eu trabalhava de casa e, num dia atípico, meu chefe me chamou para comparecer ao escritório. Sem rodeios, ele disse que eu estava dispensada e que não poderia recorrer a quaisquer benefícios. Nem mesmo seguro desemprego. Saí de mãos abanando. Tinha apenas um apartamento que já era meu, e uma filha, Foqini, de oito anos para sustentar. Minha filha não come bem como antes e não entende os cortes que precisamos fazer. Há dois anos eu não compro roupas, brinquedos ou chocolates para ela. Também não vai ao cinema, ou sai com os amigos, porque eu simplesmente não posso mais bancar esse padrão de vida. O único lugar aonde ela vai é a escola, que é pública. Como explicar o que é a crise para uma criança? Como fazê-la entender que hoje temos menos do que tínhamos há três anos? Números, dívidas, medidas políticas… Tudo isso é muito abstrato para uma criança. Já estava separada do meu ex-marido há seis anos, mas não somos divorciados porque não temos dinheiro para pagar um advogado e todo o processo jurídico. É muito difícil estar ligada a um homem que já não amo, e com o qual é quase impossível de se manter diálogo. Ele também está desempregado e recebe 360 euros por mês (970 reais) de seguro desemprego. Toda semana ele me visita e decide quanto dinheiro vai dividir comigo, para ajudar a alimentar nossa filha.  Nas poucas vezes em que vou ao supermercado, nunca tenho mais de 20 euros (50 reais) no bolso. Desde a crise, não compro carne, verduras ou frutas e os armários de casa já se acostumaram a ficar vazios. A inflação alimenta os preços altíssimos das mercadorias, e os salários continuam os mesmos. As notícias dizem que o valor dos alimentos cresceu 5% desde a crise, o que implica num aumento de 887 dólares (1 800 reais) em gastos para uma família de três pessoas. Meu ex-marido mal recebe metade desse valor. Agora, até mesmo as famílias ricas estão empobrecendo, pois os salários baixos ou estagnados não acompanham o aumento dos produtos. Vejo famílias conhecidas e até mesmo amigos próximos morando nas ruas, colhendo resto de comida das lixeiras. Conheço pessoas que se suicidaram porque não conseguiram quitar suas dívidas. Fiquei quatro meses sem eletricidade, por falta de pagar a conta de luz. Também precisei cortar a água e durante esse tempo precisei deixar minha filha, hoje com 11 anos, morando com o pai. Foram meses muito solitários e duros. Sem internet, ficou ainda mais difícil de procurar empregos. A oferta é muito escassa e os próprios gregos preferem empregar estrangeiros ilegais, pois se paga menos e eles não desfrutam de benefícios, como décimo terceiro salário e férias. Sou formada em administração, tenho experiência no mercado de trabalho, falo inglês fluentemente e não consigo emprego algum. Tentei conseguir empregos limpando casas, sendo empregada ou faxineira, mas ninguém está empregando no país. Há dois anos, recebo ligações e cartas do banco, que cobra dívidas passadas, que não pude pagar desde que fiquei desempregada. Agora eles ameaçam tirar a minha casa. Querem que eu a venda, mas para onde vou com a minha filha? Tenho fé de que, eventualmente, não só a dívida pública grega, como também a de cada grego, serão perdoadas. Não há outra saída. O maior problema da Grécia, hoje, é o desemprego. Fora do mercado de trabalho e sem fonte de renda, fica impossível pagar os impostos, quitar as dívidas e aquecer a economia. Atualmente, o país se encontra num círculo vicioso: as medidas de austeridade adotadas pelo governo grego empobrecem a população, que sem dinheiro não irá se reerguer.

 Maria Luísa Lara Jimenez, 52 anos, dona de casa, Ciudad Real, EspanhaImage

A crise do euro me atingiu de forma diferente. Engravidei aos 15 anos e casei logo em seguida, com 16. Dediquei minha vida aos meus filhos e tinha planos para depois que eles saíssem de casa. Queria terminar meus estudos, pois cursei apenas o primário, conseguir um trabalho e me tornar independente do meu marido. Esse sonho, no entanto, foi destruído com a chegada da crise. Já não há lugar para uma mulher com a minha idade, e sem experiência, no mercado de trabalho. Quero me divorciar, mas não tenho condições financeiras para isso; nem para o processo jurídico, nem para me sustentar sozinha. Eu e meu marido dormimos em quarto separados, não trocamos carícias e o que nos mantêm juntos é a estabilidade financeira, que melhorou depois que quatro de nossos cinco filhos saíram de casa. A situação econômica na Espanha me abalou mais emocionalmente do que economicamente. Ela afeta ainda mais a vida das mulheres que não têm estudo, que casaram cedo e se dedicaram aos filhos. Ficamos agora sem saída: dependemos financeiramente de nossos maridos e com o alto desemprego e o aumento das mensalidades do ensino superior, fica quase impossível para nós revertermos o quadro de dependentes. A relação afetiva das mulheres espanholas com seus maridos foi muito afetada pela crise. Não apenas eu enfrento dificuldades, como existem muitas outras espanholas com histórias similares a minha. Ouso dizer que a maioria das mulheres na Espanha quer se separar e se divorciar de seus maridos, mas não o fazem porque não é algo economicamente viável.

Chiara Serenelli, 31 anos, arquiteta, Loreto, Itália

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Decidi seguir a vida acadêmica porque achava que teria melhores condições de conseguir emprego. Cursei arquitetura na faculdade e depois deixei minha cidade natal, Loreto, para fazer mestrado e doutorado em Florença. Achei que aquilo abriria portas para uma carreira de pesquisadora na própria faculdade. Esse era o meu plano, mas as coisas não saíram da forma que imaginei. O problema agora é outro: tenho qualificações demais para conseguir um emprego na Itália. Durante o doutorado, que era bolsista, trabalhei na faculdade por nove meses e recebia um salário de 260 euros (700 reais), mas agora, recém-doutorada e desempregada, preciso dar duro para conseguir outro emprego. As contas continuam chegando à minha casa. Eu e meu namorado dividimos um apartamento e brigamos constantemente por causa de nossas finanças apertadas. Temos que dividir o pouco que temos e isso gera uma tensão muito grande entre nós. Estou atrás de qualquer emprego para melhorar minha situação pessoal e com ele, por isso considerei tirar todas as qualificações do meu currículo para ver se consigo um emprego mais rápido. Apresentá-las em entrevistas apenas assusta as empresas, que não querem empregar pessoas qualificadas, pois isso implicaria em pagar salários altos. Me vejo numa emboscada: estudei todos esses anos para conseguir um emprego melhor e agora o fato de eu possuir todas as qualificações é o que me afasta do mercado de trabalho. Penso que teria melhores chances de conseguir emprego saindo do país. Pretendo ir para o Brasil para procurar emprego, porque a Itália já não é o destino ideal para quem quer trabalhar. Ouvimos dizer que as coisas estão muito melhores nos países emergentes e isso faz com que nós, europeus, cogitemos deixar nossos países. Nem mesmo cidades ricas como Florença escaparam da crise. Muitas lojas fecharam e as que permanecem abertas sobrevivem com os gastos de turistas, e não de nativos. Quando volto dos mercados de rua, que são comuns em Florença, vejo pessoas pegando os restos de comida do chão. Eu realmente espero que esse cenário seja temporário. Às vezes eu me pergunto: quando isso vai acabar? Será que eu estarei segura? Tento ser otimista, porque é a única coisa que resta a se fazer.

Adelaide Coelho, 50 anos, pesquisadora de conteúdos para televisão, Setúbal, Portugal

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A crise chegou mais cedo em Portugal do que em outros países europeus. Em 2007, perdi o emprego em uma empresa de televisão em que trabalhei por nove anos. A razão: tinha muita experiência na minha área (mais de 26 anos) e nenhuma empresa poderia pagar o salário que eu “merecia”. A partir daí, minha vida começou a ter retrocessos e foi difícil reequilibrar.  Fiquei desempregada por 28 meses, e em apenas 18 obtive subsidio de desemprego do governo. Recebia 800 euros (pouco mais de 2 mil reais), o que significava um terço do meu salário como pesquisadora. Nos outros 10 meses restantes, apenas sobrevivi com a ajuda financeira dos meus pais e de uma amiga. Foi desesperador, pois não só a crise dificultou o reingresso no mercado do trabalho, como a idade também. As empresas, quando contratam, preferem pagar estagiários para fazer o mesmo trabalho de uma pessoa experiente. Depois de mais de dois anos desempregada, consegui em setembro de 2012 uma vaga para trabalhar na minha área. Tive muita sorte, mas meu padrão de vida até hoje não se recuperou. Antes, podia bancar viagens, saídas, roupas e alimentos mais caros. Hoje, creio que não há europeu que não pense duas vezes antes de comprar qualquer coisa. A realidade está muito difícil. A pobreza e a violência aumentaram muito na minha cidade, Setúbal (50 quilômetros ao sul de Lisboa), mas também no resto do país. O número de mendigos aumentou de uma forma impressionante, simplesmente porque inúmeras famílias perderam o que tinham, por não arcarem com suas dívidas. Conheço muitas pessoas que estão sofrendo os efeitos da crise, principalmente porque estão desempregadas ou com dívidas impagáveis aos bancos. Pelo rádio e pela televisão ouvimos com tristeza a situação delicada na qual o país se encontra: empresas quebraram, há muitas greves nas ruas e os desempregados fazem manifestações. Vemos ainda noticias que não ajudam a acreditar nos políticos, que apelam à austeridade e acabam por esbanjar dos fundos públicos descaradamente. Se tivesse dinheiro suficiente, imigraria para o Brasil. Enquanto isso não acontece, torço para que a crise não devaste ainda mais o nosso país.

*Este texto foi editado e publicado na revista CLAUDIA, edição de janeiro de 2013.

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